Na busca de legitimidade econômica — aqui estão Calabi, que foi da equipe, e Maílson, que foi depois meu Ministro da Fazenda, que sabem disto —, fomos ver o que se tornaria o Plano Cruzado. Mandamos Pérsio Arida a Israel para procurar saber o que estava sendo feito lá, na busca de um plano econômico não ortodoxo, mas heterodoxo. Eu sabia que não poderia fazer um plano ortodoxo, nem seguir nenhuma norma de conduta de cartilha internacional. Se o fizesse, iria optar pela recessão, pelo desemprego, pelo atraso. Recusei-me a fazer isso. (Palmas.)
Partimos para o Plano Cruzado, sabendo de todas as dificuldades. Não iniciei o Plano Cruzado sem saber os riscos que correríamos. Lembro-me — e Calabi está aqui — da noite em que nos reunimos, quando eu disse: “Sei, perante todos os senhores, que estou colocando a minha cabeça na guilhotina, mas temos de ter ousadia. Vamos ousar! Vamos tentar romper essa barreira para tentar dominar a inflação!”
A inflação não foi uma invenção minha, nem do meu governo. O Figueiredo já deixou a desvalorização da moeda perto dos 300% ao ano. No final de meu governo a economia sofreu como nos meses que antecederam o governo do Presidente Lula. A inflação subiu de 5%, em março de 1989, quando começou a campanha eleitoral, para 82%, em março de 1990. Essa inflação não foi minha. Era fruto da expectativa do futuro governo. Posto muitas vezes diante da alternativa da recessão, minha opção pessoal foi de indexar os salários, corrigindo-os mensalmente.
Cometemos erros e acertos. Reconheço muitos erros que cometi. Foram muitos, muitos erros. Não vou relatá-los, porque levaria muito tempo. Mas, na verdade, em alguns momentos, também tivemos muitos acertos.
Hoje, posso dizer da tribuna do Senado que aqueles não foram anos em que o Brasil recuou, atrasou-se. Ouço, muitas vezes, dizerem que foram anos perdidos. A década de 80 não foi perdida. Se separarmos os períodos de 1980 a 1985 e de 1985 a 1990, verificaremos que, de 1985 a 1990, obtivemos números na economia que até hoje não foram superados no Brasil. Naqueles cinco anos, crescemos 99% no nosso PIB; chegamos a ter o terceiro saldo exportador internacional, depois do Japão e da Alemanha. A renda per capita — tratando sempre de desempenho econômico, para não atrapalhar —, em 1984, era de US$1,468 e, em 1989, chegou a US$2,923. Hoje, está em US$2,789. Isso demonstra que aquele não foi um período de paralisação. Ao contrário, o Brasil avançou, e muito, durante aquele período.
Enfim, saí do governo consciente de que ninguém, naquelas circunstâncias, teria mais desejo de acertar do que eu tive. Por exemplo: o déficit primário do Tesouro, em 1984, foi de 2,58% do PIB e, quando saí, deixei um superávit primário de 0,8%. Buscávamos o equilíbrio.
Vejamos outros dados:
A dívida externa passou de 54% para 28% PIB.
Na energia elétrica, a produção cresceu 24,1%; o número de consumidores cresceu 22,3%; os investimentos foram da ordem de 29 bilhões de dólares.
Passamos do oitavo para o sétimo lugar em economia industrial no mundo.
No petróleo, passamos de 2,7 bilhões de barris para 8 bilhões.
Tivemos três safras agrícolas recordes, passamos de 50 para 70 milhões de toneladas de grãos.
Em estanho, com 400 mil toneladas, passamos a ser o maior produtor do mundo.
Em manganês, multiplicamos por 4 nossa produção, chegando a 810 mil toneladas.
A Siderbrás passou de quinto para segundo maior grupo siderúrgico do mundo.
Passamos de oitavo para sexto produtor maior produtor mundial de aço.
A MODERNIDADE
Nosso desafio passava por uma modernização da administração pública. Melhorei a eficiência do serviço público, dando aumentos reais ao funcionalismo, além do 13o salário. Criei a ENAP, a Escola Nacional de Administração Pública, seguindo o modelo francês, na tentativa criar uma carreira geral do serviço público, e começamos a implantar a isonomia salarial.
Extingui a conta de movimento do Banco Central no Banco do Brasil, unificamos totalmente o Orçamento Geral da União, com a inclusão de todas as despesas de natureza fiscal, inclusive as realizadas pelo Banco Central e pelo Banco do Brasil, como as operações de crédito rural, criamos a Secretaria do Tesouro Nacional. Criei o SIAFI, abrindo as informações sobre o Orçamento.
Abrimos o País para a modernidade. Houve conquistas extraordinárias na área da ciência e da técnica. Dominamos a tecnologia do enriquecimento do urânio, da água pesada, da grafite nuclear, dos lasers de alta potência, do radar, das fibras de carbono, das fibras óticas. Estimulamos a formação de recursos humanos em massa nos grandes centros de excelência do mundo. Demos mais de 113 mil bolsas de ensino superior, mais que o total dos 33 anos de existência anterior do CNPq.
Reformulamos a política nuclear, redi-mensionando-a, adequando-a às reais necessidades e possibilidades do País. Lançamos as bases para uma política de química fina e biotecnologia.
Na área dos transportes, foram restaurados 11 mil e 700 quilômetros de rodovias, pavimentados 4 mil e 508 quilômetros de estradas vicinais, e executados mais de 7 mil e 100 quilômetros de revestimento primário. Passamos de 7 para 12 mil o número de postos de correio.
Houve um aumento de mais de um milhão de hectares da área irrigada, o que significa a ampliação de 56% do que se fizera até então.
Começamos a reforma agrária. Transformamos o programa em ministério no meu Governo. O nome sugerido era Ministério Extraordinário de Política Fundiária. Eu disse: “Não. Vamos chamar de Ministério da Reforma Agrária, porque essa palavra é maldita; temos de colocá-lo na ordem do dia do Brasil” — peço o depoimento do Nélson Ribeiro, que está aqui presente, e que sabe que foi isso que ocorreu. Desapropriamos 4 milhões e 500 mil hectares, além da regularização fundiária de 4 milhões e 300 mil hectares, 10 vezes mais do que havia sido feito nos últimos 21 anos, desde a criação do Estatuto da Terra. Foram mais de 200 mil famílias beneficiadas.
O meio ambiente, o futuro do homem na face da Terra, a proteção da natureza passaram a ser prioridade e um tema dominante em nossas preocupações. Criamos o programa “Nossa Natureza” e o IBAMA. Criamos 6 milhões de hectares de reservas ambientais.
Até nosso governo, desde Rondon, haviam sido demarcados 12 milhões de hectares de reservas indígenas; nós demarcamos 32 milhões de hectares.
Com o Programa Calha Norte, livramos a Amazônia do narcotráfico, do contrabando, do refúgio das guerrilhas, protegemos as populações e transformamos fronteiras mortas em fronteiras vivas.
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TUDO PELO SOCIAL
Até então, no Brasil, administrar era sempre tratar de infra-estrutura, dos grandes problemas de construção. A partir dali, colocamos a área social em evidência, e daí o nosso lema “Tudo pelo social”.
Transformei a Presidência numa grande gerência de programas especiais de combate à pobreza. Mandei pesquisar e identificar, município por município, quais as dificuldades mais prementes sofridas pela população. Foram definidos 16 projetos de ajuda direta às comunidades carentes, dirigidos por agentes das próprias comunidades, como as pastorais, escolas, entidades assistenciais, etc. A mais radical diminuição da pobreza, no Brasil, ocorreu durante o meu governo. Por causa, evidentemente, dos programas de ação comunitária de ação direta, sem intermediação política ou administrativa. 26 milhões de pessoas foram beneficiadas com o vale-transporte; 18 milhões de beneficiados, diariamente, com o vale-refeição; 7,6 milhões de famílias atendidas diariamente pelo programa do leite; 11 milhões de crianças, gestantes e nutrizes no programa de alimentação suplementar; 2 milhões de crianças nas creches casulos; 50 milhões de estudantes e 8 milhões de irmãos de estudantes atendidos pela merenda escolar, que passou de 140 para 260 dias; e assim por diante. A farmácia básica da CEME atingiu 50 milhões de pessoas com seus 44 medicamentos. A mortalidade infantil foi reduzida em 41% graças ao programa de saúde na comunidade. (Aliás, fiquei satisfeito de, em entrevista recente, Maria da Conceição Tavares atribuir a diminuição da mortalidade infantil nos últimos anos ao meu Programa do Leite.) 230 mil voluntários foram mobilizados nesses programas…
Criamos a universalização da saúde. Antes, no Brasil, o excluído — essa é a palavra que designava o trabalhador que não tinha carteira — não podia tomar uma injeção. Só podia recorrer às Santas Casas. A partir daquele tempo, criamos o direito de universalização da saúde, o direito à saúde e o direito à assistência médica.
A SOCIEDADE DEMOCRÁTICA
Nós, por um sistema de liberdade e de capilaridade, conseguimos que a sociedade brasileira como um todo se tornasse democrática. Abriram-se os sindicatos, abriram-se as universidades, abriu-se a imprensa, abriram-se todos os clubes de associações de bairros. Ninguém tinha medo, e o Brasil tornou-se uma sociedade democrática.
Esse é o grande legado daqueles cinco anos que Tancredo nos deixou, dos quais fui o executor.
Foi o legado de não somente restituirmos instituições democráticas ao Brasil — não voltou somente o Congresso a funcionar plenamente, não voltou somente a funcionar a imprensa em sua absoluta liberdade —, mas de começarmos a ser uma sociedade democrática.
Muitos países que fizeram a abertura democrática naqueles anos não construíram sociedades democráticas. Vamos citar o exemplo do Chile: até hoje, o país tem hipotecas militares e luta para sair delas. Há o exemplo da Espanha, que todos dizem que teve êxito. A Espanha até hoje vive no sangue das divisões, sem conseguir unir-se em um país. Nós, aqui, mantivemos, com forças as mais divergentes, um País unido em uma transição que, como já se disse hoje, foi a mais bem-sucedida de todas. Portanto, olhar para esses vinte anos que passaram é perceber que as forças políticas brasileiras foram capazes de atravessar um período histórico dos mais difíceis para que o País começasse uma nova vida e um novo momento.
De tal modo que, já em 1989, tínhamos um candidato à Presidência da República que era operário e que quase ganha a eleição. Chegou muito perto do primeiro colocado. Por quê? Porque a sociedade havia mudado. Se a sociedade não tivesse mudado, isso não existiria; sem a conquista da liberdade, isso não ocorreria; sem a conquista do social, isso não seria possível. E, quando se fala em construção das elites, vamos verificar que as elites, em especial as políticas, participaram juntas na construção dessa sociedade democrática.
Não devo me alongar mais. Tomei umas notas, mas não posso fazer um balanço de governo aqui, no Senado, em uma sessão como a de hoje. Quero apenas fazer alguns agradecimentos.
ULYSSES GUIMARÃES
O primeiro agradecimento é a Ulysses Guimarães. Ulysses, que, como eu ressalvava, ontem, no programa Roda Viva, foi meu conselheiro de todas as horas. Ele liderara a oposição durante os difíceis anos do regime militar. Fora a grande força durante as “Diretas Já”. Era o fiador da Aliança Democrática, obra, também, de sua capacidade de articular.
Mas devo dar aqui meu testemunho sobre o seu desprendimento naquela noite terrível de 14 para 15 de março de 1985. Em nenhum momento ele colocou os interesses pessoais ou partidários acima dos interesses da transição. Ele podia, com legitimidade, avocar para si a Presidência da República.
Em torno a ele, muitas eram as vozes que propunham essa solução. Convencido de que a Constituição e o processo indicavam meu nome, foi o primeiro a insistir comigo, a me dizer que era o meu dever tomar posse.
Depois, durante os anos de meu governo, sempre teve um papel central. Conduziu a Assembléia Constituinte e foi um apoio decisivo na construção da sociedade democrática.
Quero finalmente pedir licença para citar os nomes dos meus Ministros que aqui estão.
Quero agradecer ao Célio Borja; quero agradecer ao Pertence, que foi Procurador-Geral da República. Foi quando começou todo o processo que transformou o Ministério Público, com a ação civil pública. Quero também saudar o Fernando Lyra. Quero saudar o General Leônidas Pires Gonçalves, que eu conhecia desde o tempo de major — agora é que ele está sendo promovido a coronel —, e que foi um grande auxiliar também durante o meu Governo, com os outros Ministros militares.
Quero me dirigir ao Dr. Francisco Dornelles, também pessoa muito ligada a Tancredo, seu sobrinho querido, que muito me ajudou não só naquele tempo como depois, tendo sempre uma compreensão muito grande das minhas dificuldades e dos meus deveres. A Vicente Fialho; Aníbal Teixeira; a Antonio Carlos Magalhães, a quem devo uma palavra especial pela velha amizade que durante tanto tempo nos une e que, mais do que Ministro, era sempre um conselheiro que eu tinha ao lado. Certa vez, eu o ouvi dizer que tinha um grande respeito pelo Presidente da República. Sempre teve e passou a ser muito formal. Isso, aliás, é também atitude dos militares. O Leônidas sempre me chamava de Zé. A partir do dia em que me tornei Presidente, ele dizia: “O Senhor Presidente.” Nunca mais me chamou de Zé. O Antonio Carlos, um dia, me disse: “Tenho o meu temperamento” — e acrescentou, modesto —, “mas o seu deve ser melhor do que o meu, porque você já foi Presidente da República!”
Quero lembrar também a Marco Maciel, que aqui está presente; a João Alves; a Paulo Tarso Flecha de Lima; a Paulo Lustosa; a Jorge Bornhausen, com quem criamos 150 escolas técnicas no Brasil inteiro; a Prisco Viana; a Maílson da Nóbrega; a Waldir Pires; a Roberto Santos; a Pedro Simon; a Flávio Peixoto; a Dante de Oliveira; a Seigo Tsuzuki, admirável colaborador.
Também devo lembrar Leopoldo Bessone; Pimenta da Veiga, que foi Líder do meu Governo; Marcos Vilaça, um grande colaborador; Arthur Virgílio, que também foi Líder naquele tempo; General Bayma Denys, a quem devo grande gratidão pelo apoio que me deu e com quem formulei uma nova política nacional de segurança, na qual colocamos a inversão das prioridades brasileiras, o que possibilitou a ausência de problemas no Sul do Brasil para voltarmos os olhos para a fronteira dos nortes, onde começava a nova ordem mundial.
Quero também agradecer a presença de Celina Ferro Costa, esposa do Ferro Costa; quero também citar, como colaborador e amigo daquele tempo, Mauro Santayanna; Mauro Salles; Dona Antônia Gonçalves, uma secretária muito dedicada a Tancredo, que também aqui está; Joaquim Itapary; Brigadeiro Moreira Lima; o nosso Raphael de Almeida Magalhães, o nosso grande Raphael, que sempre foi um homem de idéias; Iris Rezende, Borges da Silveira; Joaquim Campelo e Augusto Marzagão, amigos especiais; meus secretários de imprensa, Fernando Cezar Mesquita, Getúlio Bittencourt, Carlos Henrique Almeida Santos, Frota Neto e Toninho Drummond.
Também quero lembrar, com muito pesar — V. Exªs me desculpem, porque é da minha obrigação, embora o tempo realmente esteja longo —, aqueles que morreram, que desapareceram, mas que deram uma grande contribuição ao meu Governo e que trabalharam comigo.
Recordo, em primeiro lugar, Dilson Funaro. (Palmas.)
Recordo José Hugo Castelo Branco. (Palmas.)
Chamo Marcos Freire. Recordo Roberto Cardoso
Alves, Roberto de Abreu Sodré, Renato Archer, Carlos Sant’Anna, Celso Furtado. (Palmas.)
Há dois dias, perdemos um dos homens mais importantes que o Brasil já teve, um grande colaborador, o Almirante Henrique Sabóia, um grande patriota. (Palmas.)
O LEGADO DE TANCREDO
Assim, Srªs e Srs. Senadores, quero me despedir desta tribuna e dizer que conseguimos deixar para o País, por herança de Tancredo Neves, um grande legado democrático. Esse legado aí está consolidado, e eu, que assumi o Governo pensando que a democracia podia morrer em minhas mãos, saio desta tribuna dizendo que, graças a Deus, nas minhas mãos a democracia não morreu nem retrocedeu no Brasil. Ela floresceu para torná-lo o grande País democrático que é e para nos transformar na grande sociedade democrática que somos.
Muito obrigado.
(Palmas.)
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